quinta-feira, 23 de março de 2017

Não me assustam nem gritam, os meus mortos...

De vez em quando,
uma emoção em falso,
a ferida abre-se:
e eles entram solenes,
os meus mortos
Migram dos sítios quentes
onde os tenho de cor,
e as folhas do arbusto na varanda
em frente à minha cama
trazem as suas vozes
E quanto mais a luz é sobre a ferida,
mais eles aí estão
Cobre-as, às folhas,
o cortinado da janela larga,
e o que avisto daqui
é só um gume a verde,
estreita faixa de verde,
de nem fotografia,
porque em dança
Não me assustam
nem gritam, os meus mortos,
só me lembram que a chuva
que agora se insinua devagar
lhes foi tempo e morada,
e eles a mim
Que alguns deles olharam
nesta mesma varanda
as mesmas folhas,
mais jovens e mais verdes,
ou que outros deles viram outras folhas,
mais jovens, mas sem cor
Neste tempo de agora que os não tem,
aos meus mortos,
cresceram pouco as folhas,
e a emoção em que os tropeço, e a mim,
não os fazem nascer
( Tomara o lume
que as mantém em vida
fosse o gume na ferida
de os não ter )
Ana Luisa Amaral Sentidos em E TODAVIA, 2015.

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