quarta-feira, 4 de novembro de 2020

(...)

Morrer de amor

ao pé da tua boca

Desfalecer

à pele

do sorriso

Sufocar

de prazer

com o teu corpo

Trocar tudo por ti

se for preciso

Maria Teresa Horta, in “Destino”

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Sinto que ainda ficou uma palavra minha esquecida na tua boca

esperar que voltes é tão inútil como o sorriso escancarado dos mortos na necrologia do jornais e no entanto de cada vez que a noite se rasga em barulhos no elevador e um telefone de debruça de um sexto andar sinto que ainda ficou uma palavra minha esquecida na tua boca e que vais voltar para a devolver 

De Alice Vieira, Os armários da noite

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Je t’aimerai encore

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Pergunta-me...

Pergunta-me

se ainda és o meu fogo

se acendes ainda

o minuto de cinza

se despertas

a ave magoada

que se queda

na árvore do meu sangue

Pergunta-me

se o vento não traz nada

se o vento tudo arrasta

se na quietude do lago

repousaram a fúria

e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me

se te voltei a encontrar

de todas as vezes que me detive

junto das pontes enevoadas

e se eras tu

quem eu via

na infinita dispersão do meu ser

se eras tu

que reunias pedaços do meu poema

reconstruindo

a folha rasgada

na minha mão descrente

Qualquer coisa

pergunta-me qualquer coisa

uma tolice

um mistério indecifrável

simplesmente

para que eu saiba

que queres ainda saber

para que mesmo sem te responder

saibas o que te quero dizer

                                                                                                                                                                                                                                    de Mia Couto

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O DO AMOR 

Espaço sem portas, sem estradas, o do amor. 
O primeiro desejo dos amantes é serem velhos amantes.
E começarem assim o amor pelo fim. 
de Regina Guimarães

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Le vent le cri...

quarta-feira, 27 de maio de 2020

E ainda...

Wuhan proibiu consumo de animais selvagens durante cinco anos.
Durante cinco anos, os animais selvagens podem estar calmos.
Talvez ao fim desses 5 anos os animais selvagens fiquem mansos e possam já ser legalmente comidos.
O manso é aquilo que é comido sem dizer ai nem ui.
A fome humana, essa, nunca amansa.
Ao contrário dos cavalos selvagens, de alguns lobos e de vários chacais.
O cavalo domestica-se à força do punho forte e à corda. Com a repetição e por vezes ao pontapé.
Mas não podes amansar o teu estômago, que é coisa selvagem.
Não há corda, punho, pontapé ou jejum repetido que domestique.
Levanta-se o estômago a cada novo dia de manhã e diz: Quero.
Em Diário da Peste, 21 de maio, de Gonçalo M. Tavares

quarta-feira, 20 de maio de 2020

A felicidade vai... Desabar sobre os homens



Menina a felicidade
É cheia de pano
É cheia de peno
É cheia de sino
É cheia de sono

Menina a felicidade
É cheia de ano
É cheia de eno
É cheia de hino
É cheia de onu

Menina a felicidade
É cheia de AN
É cheia de EN
É cheia de IN
É cheia de ON

Menina, a felicidade
É cheia de A
É cheia de E
É cheia de I
É cheia de O

sábado, 25 de abril de 2020

terça-feira, 7 de abril de 2020

domingo, 5 de abril de 2020

Esta palavra saudade dói no corpo devagar

Esta palavra saudade
sete letras de ternura
sete letras de ansiedade
e outras tantas de aventura.
Esta palavra saudade
a mais bela e mais pura
sete letras de verdade
e outras tantas de loucura.
Sete pedras, sete cardos, sete facas e punhais
sete beijos que são nardos
sete pecados mortais.
Esta palavra saudade
dói no corpo devagar
quando a gente se levanta
fica na cama a chorar.
Esta palavra saudade
sabe a sumo de limão
tem o travo de amargura
que nasceu do coração.
Ai! palavra amarga e doce
estrangulada na garganta
palavra como se fosse
o silêncio que se canta.
Meu cavalo imenso e louco
a galopar na distância
entre o muito e entre o pouco
que me afasta da infância.
Esta palavra saudade
é a mais prenha de pranto
como um filho que nascesse
por termos sofrido tanto.
Por termos sofrido tanto
é que a saudade está viva
são sete letras de encanto
sete letras por enquanto
enquanto a gente for viva.
Esta palavra saudade
sabe ao gosto das amoras
cada vez que tu não vens
cada vez que tu demoras.
Ai! palavra amarga e doce
debruçada na idade
palavra como se fosse
um resto de mocidade.
Marcada por sete letras
a ferro e a fogo no tempo
Ai! palavra dos poetas
que a disparam contra o vento.
Esta palavra saudade
dói no corpo devagar
quando a gente se levanta
fica na cama a chorar.
Por termos sofrido tanto
é que a saudade está viva
são sete letras de encanto
sete letras por enquanto
enquanto a gente for viva.
Sete Letras  de Ary dos Santos

sexta-feira, 3 de abril de 2020

quinta-feira, 26 de março de 2020

Filha da puta de temperatura

Diário da Peste,
25 de março de 2020

Por vezes, no mundo terrível, pessoas abrem um pouco a porta de casa e cospem à passagem de estrangeiros.
Estrangeiro, numa certa língua eslava, dizem-me, significa mudo.
Aquele que não fala a minha língua, é mudo.
Aquele que não tem a minha história, é mudo.
“Vírus detectado nos esgotos na Holanda”.
“Sol sai à rua, mas chuva volta a cair esta quarta-feira”.
Há barcos que estão atracados à espera de autorização para despejar a carga humana.
A natureza deve estar a olhar estupefacta para os humanos.
Por que se estão a retirar?
Duas cadelas.
Jeri, diminutivo de Jeriquaquara, brasil.
7 anos. E Roma, pastora belga.
Um ano.
A minha cadela Roma está agitada.
Energia excessiva por metro quadrado.
“Sobe para 30 o número de médicos que morreram em Itália.”
Deixa; agora outra coisa.
Somos monges, sim, mas sem a crença.
Isolar-se por medo ou precaução não é o mesmo que isolar-se por fé.
Virilio falava da "destruição do ambiente pela velocidade".
Accioli em Itália, na zona Norte, está a correr em casa no mesmo sítio para não ficar louco.
Ficar no mesmo sítio, mas de forma rápida.
Destruir a própria casa pela velocidade.
Destruir a família pela velocidade.
Destruir a família pela lentidão.
Vejo uma corrida de Bolt.
Record de 100 metros, 9, 58 segundos.
“Sol sai à rua, mas chuva volta a cair esta quarta-feira”.
Imagino as pessoas a saírem de casa e a irem festejar com Bolt o record do mundo.
Estar o mínimo de tempo fora de casa.
Fazer o essencial e voltar.
Ser um velocista, mas no trajecto ir fazendo coisas com as mãos.
Comprar alimentos.
Conduzir o carro.
A velocidade da cabeça e a velocidade das mãos.
Ouvir rádio no carro e exigir um aumento de velocidade da fala.
Que na rádio começassem a falar com as rotações erradas.
Lembro-me de um vinil.
Uma história infantil do lobo mau e dos três porquinhos. Num disco.
Dizia que o lobo era mau, muito mau, todo mau.
Mas ninguém é mau, muito mau, todo mau.
"a catástrofe seria a presença simultânea de todas as coisas", disse Sloterdijk, numa entrevista antiga.
A catástrofe agora como a ausência de todas as coisas.
Notícias com dois dias.
Na Croácia um terramoto exige que as pessoas saiam à rua e um vírus exige que as pessoas fiquem em casa.
As pessoas saem à rua, mas permanecem com espaço entre si.
Estão baralhadas: saio, fico.
Roma abana a cauda, tem sede.
Jeri, pacata, consome energia a olhar para as coisas.
Pego num anjo de vinte centímetros de altura.
É feito de um material estranho.
Parece mole por dentro.
Vou buscar uma faca de cozinha.
Páro.
Deixo o anjo e a faca de cozinha lado a lado.
A ver se a faca torna mais bravo o anjo, a ver se o anjo amolece a faca.
Estou a olhar para os dois como se fossem dois amigos recentes.
Mas não são.
738 mortos em Espanha.
Em Itália, 683.
Portugal, Espanha, frança, Itália, Estados Unidos, Brasil, Irão, Coreia do Sul, Holanda, Bélgica.
A temperatura de um país é medida pelo número de mortos.
Uma temperatura negra, grotesca.
Filha da puta de temperatura.
Ouvir um número como se ouve uma resposta.
Mas ninguém fez nenhuma pergunta.
As lojas de hamburgers no Reino Unido estão a fechar.
Leio um livro sobre características dos animais.
Cada animal tem uma maluquice própria.
Há muito medo nos lares.
É como uma ameaça pública feita aos mais velhos.
O que sentirá quem tem mais de setenta anos, mais de oitenta anos?
A roupa tem de ser lavada pelo menos a setenta graus.
É preciso queimar o inimigo,
Gosto de um verso, mas esqueci-me dele.
Roma brinca com Jeri, as duas não percebem nada.
O meu anjo está boquiaberto.
Mas não foi por vontade própria.
Fui eu que lhe abri a boca à força.
Mas está espantado com tudo isto.
Mesmo os seres que vêm lá de cima não entendem muito bem o que está a acontecer cá em baixo.
O anjo está de boca aberta.
Gonçalo M. Tavares, Diário da Peste , por vezes no mundo terrível, no Jornal Expresso de dia 26 de março, 

sábado, 21 de março de 2020

Porque não suspendemos a poesia..

Quando partires
se partires
terei saudades
e quando ficares
se ficares
terei saudades
Terei
sempre saudades
e gosto assim.
Adília Lopes

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020


عاشقان بالاخره در جایی ملاقات نمی کنند. آنها در کنار هم هستند
Lovers don't finally meet somewhere. They're in each other all along
J. M. Rumi

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

E que tudo o que disse foi com silêncio...

Se eu desaparecer hoje
E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado
a escrever desde a ponta da língua
à légua mais distante da minha vida,
diz que compreendi.

Diz que sei que nada está onde é certo estar
Que o amor súbito é a escada para o entendimento
Diz que fui ar azul sobre campos de secura
estrada recta ao infinito,
um acidente ao longe
Que provei toda a sede quando engoli os homens
Que queimei alegremente no ácido das palavras
Que tombei em ricochete para que me vissem
e que, quando me viram, me ergui animal

Diz que me viste nua, sempre
Que corri por hospícios de olhos fechados
e a boca às avessas
Que vivi mais ao alto do que em mundo plano
e fui honesta na minha rente loucura

Diz que nunca esqueci a subida a um plátano
Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu, no de ninguém
Que fui o halo frio que preenchi com esta pena
Pela minha ausência
E que tudo o que disse foi com silêncio

Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,
Que o teu corpo me serviu de andar às pernas asmáticas
Que te agradeço ter-te oferecido lírios
Que me reduziste o nojo da espécie
Diz que eu fui eu

Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:
- quanto em mim fui que não vivi
quanto em ti é que fui eu?

Mas não te preocupes, não desapareço hoje
Quando me conheceste já eu não existia
e tu sabes
que essas saudades que vais tendo
são as minhas.


Cláudia R. Sampaio

terça-feira, 7 de janeiro de 2020