sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

...e a propósito de amanhã, lembrei-me...

Um rei que "por tanto padecer das dores alheias e da sua própria aflição" com a morte, teve a ideia de expulsá-la do reino. Mandou construir quatro muros muito altos longe da cidade e decretou que  " (...) todos os cemitérios do país deveriam ser desatulhados de ossos e de restos, fosse qual fosse o seu grau de decomposição, e tudo isto metido a eito em caixões novos que seriam transportados e enterrados no novo cemitério (...) De repente, toda a gente começou a achar que a ideia do rei era a melhor que jamais nascera em cabeça de homem, que nenhum povo podia honrar-se de haver um rei assim (...)"
Muitos anos de desenterramentos por todo o reino, porque os corpos não estavam só em locais murados e definidos, mas como se sabe por todo o lado. "(...) nos montes e nos vales, nos adros das igrejas, à sombra das árvores, sob o pavimento das próprias casas onde tinham vivido, em qualquer lado que calhasse (...)" Mas como descobri-los se estavam enterrados. Então um sábio inventou um aparelho que dava um sinal luminoso e sonoro quando encontrava corpos mortos ou restos. "Finalmente, o reino viu-se liberto da morte (...) o rei decretou feriado e festa nacional. (...) Não se deve esquecer que o cemitério tinha uma admnistração complexa, orçamento próprio, milhares de coveiros, Nos primeiros tempos, os funcionários das diferentes categorias viveram no interior do quadrado, na parte central, muito longe das vistas das sepulturas. Mas depressa se levantaram os problemas da hierarquia, dos abastecimentos, das escolas para as crianças, dos hospitais, das maternidades. Que fazer? construir uma cidade dentro do cemitério? Seria voltar ao princípio, sem contar que com o passar dos anos a cidade e o cemitério se invadiram mutuamente, penetrando os jazigos pelos espaços das ruas em redor dos jazigos à procura de terreno para casas. Seria voltar à antiga promiscuidade (...) Houve então que escolher entre uma cidade de vivos rodeada por uma cidade  de mortos, ou, única alternativa, uma cidade de mortos cercada por quatro cidades de vivos." Urbanizações aceleradas, caóticas se seguiram. Transportes colectivos, policiamento, circulação forçada, trânsito...
" Quatro grandes cidades se interpuseram assim entre o reino e o cemitério, cada uma virada ao seu ponto cardeal, quatro cidades inesperadas que começaram por chamar-se Cemitério-Norte,  Cemitério-sul, Cemitério-Oriente e Cemitério-Ocidente, mas que depois foram mais benignamente baptizadas e denominadas, pela ordem, Um, Dois, Três e Quatro (...) E agora o inevitável aconteceu, apenas ficando por saber em definitivo quem começou e quando (...) corpos enterrados em pequenos quintais familiares, por baixo de flores vivas (...) no interior de grutas, ao lado de carreiros de florestas ou na encosta abrigada de montes (...) Devagar, tão devagar, o reino começou a repovoar-se de mortos (...)
Era muito velho o rei. Um dia, quando estava no terraço mais alto do palácio, viu, mesmo tendo já tão cansados os olhos, a ponta aguda de um cipreste que rompia por cima de quatro muros brancos, talvez de quintal (...) desceu ao pátio do palácio, seguiu devagar até ao bosque e (...) Ali numa clareira se deitou, sobre as folhas secas se deitou (...) e disse antes de morrer: «Aqui»"

In: SARAMAGO, José, Refluxo, Objecto Quase. Contos, 1999, pp. 51-69

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