[...] caminhavam rente aos prédios com os braços estendidos para a frente, continuamente esbarravam uns nos outros como as formigas que vão no carreiro, mas quando tal sucedia não se ouviam protestos, nem precisavam falar, uma das famílias despegava-se da parede, avançava ao comprido da que vinha em direcção contrária, e assim seguiam e continuavam até ao próximo encontro. De vez em quando paravam, farejavam à entrada das lojas, a sentir se vinha cheiro de comida, qualquer que fosse, depois prosseguiam o seu caminho, viravam uma esquina, desapareciam da vista, daí a pouco surgia dali outro grupo, não traziam ar de haver encontrado o que buscavam. [...] Lá dentro o aspecto não era diferente, prateleiras vazias, escaparates derrubados, pelo meio vagueavam os cegos, a maior parte deles de gatas, varrendo com as mão o chão imundo, esperando encontrar ainda algo que se pudesse aproveitar, uma lata de conserva que tivesse resistido às pancadas com que tentaram abri-la, um pacote qualquer, do que fosse, uma batata, mesmo pisada, um naco de pão, mesmo feito pedra [...]
Excerto de Ensaio sobre a cegueira de José Saramago
1 comentário:
Uma pequena demonstração de poder
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